Filme sobre Rubens Paiva leva história da ditadura ao Oscar, mas filha lembra: "É a denúncia de um assassinato"

Da Redação - Ruído Urbano News
No próximo domingo (2/03), a cerimônia do Oscar deve atrair olhares de todo o mundo, e no Brasil não será diferente. Por aqui, boa parte da torcida vai para Ainda Estou Aqui, filme indicado em três categorias — um marco inédito para o cinema brasileiro.
Entre os apoiadores mais próximos da história está Eliana Paiva, de 70 anos, filha do ex-deputado Rubens Paiva e de Maria Eunice Paiva, cuja trajetória é retratada no longa. Eliana, assim como sua mãe, foi presa durante a ditadura militar após a captura de seu pai.
Mesmo com a empolgação em torno da indicação histórica, Eliana contou à BBC News Brasil que sua relação com o filme é carregada de sentimentos mistos. Isso porque, antes de ser uma celebração cinematográfica, o filme é um lembrete de um crime brutal cometido dentro de um quartel do Exército.
"A gente festeja um Oscar e está achando tudo muito bom em termos de denúncia, mas antes de qualquer coisa, é a denúncia de um assassinato brutal dentro de um quartel de Exército no Brasil. Do que a gente está tratando é de um assassinato", disse Eliana.
Para ela, é essencial que o público entenda que a obra não é só uma história de família ou um drama histórico — é também uma peça de memória sobre os horrores da ditadura, entre 1964 e 1985. Nesse período, perseguições políticas, tortura e desaparecimentos forçados foram práticas comuns contra militantes de esquerda, como seu próprio pai. Mas Eliana tem dúvidas se essa dimensão histórica vai ficar clara para todos.
"Nem todo mundo vai se dar conta de que foi um assassinato bárbaro e nem todo mundo vai querer ver que foi um assassinato. O mundo é o mundo e tem pessoas de todos os tipos. Mas o fato é que ele foi barbaramente espancado e depois disso houve a morte", afirmou.
Quando a ficha caiu
Eliana também contou que demorou a entender completamente o que tinha acontecido com seu pai. Segundo ela, quem ajudou nesse processo, mesmo sem intenção, foi sua mãe, Eunice.
"Estava tentando me lembrar quando foi que a Eunice começou a ter certeza de que o papai estava morto. E lembro que, num dia, ela estava dando uma entrevista ou apenas conversando com alguém e ela soltou uma frase: 'Acho que mataram o Rubens'. Foi essa a frase que ela usou. Pra mim, naquele momento, aquilo pareceu quase normal porque, afinal, era isso mesmo que tinha acontecido", contou Eliana.
Esse momento aconteceu cerca de dois anos após o desaparecimento de Rubens, período em que a família ficou sem qualquer resposta oficial sobre seu paradeiro. Para Eliana, apesar do tom direto da mãe, ouvir aquela frase foi um choque para a adolescente de 17 anos que ela era na época.
"O que houve foi um assassinato, mas para as pessoas diretamente envolvidas como minha mãe, meus irmãos e eu, isso foi algo que foi sendo concebido aos poucos. Tudo dentro dessa frase: 'Acho que mataram o Rubens'", reforçou.
Crime oficializado
De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Rubens Paiva foi morto sob custódia do Estado brasileiro, após ser preso e torturado nas instalações do DOI (Destacamento de Operações de Informações) do I Exército, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1971. O corpo dele nunca foi localizado.
Na época, o Exército divulgou uma versão oficial dizendo que Rubens teria fugido após um resgate realizado por "terroristas". Essa versão foi posteriormente desmentida e apontada como uma tentativa de encobrir o crime.
Somente em 1996, Eunice conseguiu uma certidão de óbito para o marido. Já em 2025, com a repercussão do filme, o documento foi atualizado pelo Estado brasileiro, trazendo uma descrição bem diferente da causa da morte:
"(Causa) não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964", diz o texto atual.
Na versão anterior, constava apenas que Rubens estava desaparecido desde 1971.
História que virou cinema
Ainda Estou Aqui é baseado em um livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens. Tanto o livro quanto o filme narram a luta da família Paiva — especialmente de Maria Eunice — para lidar com o desaparecimento do ex-deputado e buscar justiça e reconhecimento sobre o que de fato aconteceu.
A produção concorre ao Oscar em três categorias: melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz para Fernanda Torres, que interpreta Eunice.
Mesmo com toda essa visibilidade, ninguém foi punido pelo desaparecimento e morte de Rubens Paiva. A Lei da Anistia, aprovada em 1979, durante os últimos anos da ditadura, segue impedindo o julgamento de agentes do Estado envolvidos em crimes políticos daquele período.
Esse é um tema que, segundo especialistas, pode voltar à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) — e, dessa vez, o próprio sucesso de Ainda Estou Aqui pode ser um fator de pressão para essa revisão.